Cartas de ninguém




-Como elas chegaram aqui? - Perguntou Arabella a irmã mais nova,seu expressão suave parecia dissolver-se em uma série de movimentos alternados.
Garganta. Pálpebras.Lábios ressecados. Em uma súbita paralesia emocional agitada.
-Como... elas... chegaram? Diga-me! - Tão seco como um soluço sem som.
A irmã nada respondeu,sabia que a zanga de Arabella passaria logo,sempre ocorria o mesmo desde quando as cartas começaram a chegar.
E Arabella sabia que a pequena travessa estava pensando nisso,era estranho pra ela poder saber exatamente o que pensavam sobre seus atos pouco comedidos e sensatos.
Tudo havia começado em um dia qualquer perdido no calendário enfadonho do tempo.
Perdoem-me a desilusão,mas era sim,um dia como qualquer outro.
Nem todos os eventos grandiosos são fadados a acontecer em datas ilustres,salvo engano.
Seu pai já tinha tomado seu café e esquecera o jornal,como o habitual.
Sua mãe gritava um palavrão qualquer pela saída repentina de seu pai,ou talvez pelo amor que já criara mofo e cheirava a naftalina.
Chá esfriado. Cão latindo. Som do sol.
Ela tinha corrido até o portão para ver se alcançava o pai e lhe entregava o jornal que ele esquecera-se.
Era nessas corridas matinais que ela,geralmente,encontrava-o dobrando a rua 15 e depositava um beijo estalado em suas bochechas fartas seguido por um : "Bom trabalho,papai."
Mas neste dia qualquer perdido no meio das datas célebres,tudo foi diferente.
Supostamente, seu pai apressara-se pois estava atrasado e ao chegar a esquina,ela  não juntou-se a ele.
Voltou pra casa com os olhos rasos,sentindo o que naturalmente sente-se ao quebrar-se um ato de fé,um ritual da vida comum.
Vento.Porta de casa. Caixa do correio.
Meio entre aberta,chamando a menina pra saber o que haveria lá dentro.
Arabella sentiu as mãos queimarem sobre a carta.
Era tão simples.pequena.
A menina sorriu ao ler seu nome no envelope.Uma carta destinada a mim?
"Queria ver o que Lourdes diria agora",pensou ela, não sem certa malícia a idéia de que fora a primeira entre suas amigas a receber uma carta exclusivamente endereçada a ela. 
"Nessa idade as crianças são mais  inimigas que amigas" Era o que explicava ao seu pai toda vez que chegava em casa machucada,em consequência de alguma briga no colégio.
Então era assim,ser amada era como receber um carta sem remetente e confiar no seu conteúdo?
Arabella,Arabella... estaria preparada para isso?
Noite. Grito. Doença. Ar quente.
Essa foi a primeira de muitas cartas que viriam a parar em suas mãos.
Cada qual por maneira mais estranha que a outra.
Uma chegara após um piquinique com Dolores e Branca.
Outra veio num avião que sobrevôou o parque.
Uma terceira após uma sessão no cinema da rua do Cassino,e ela que pensara que nada seria mais interessante do que James Dean naquela tarde.
16 anos. Discos. Festas.Cartas que não chegam.

-Como... elas... chegaram? Diga-me! - Tão seco como um soluço sem som.

Silêncio amortecido. Luzes.

 - Depois de tudo,ele vem me dizer que não existe. Que fantasiei tudo...

Eu vi as cartas,li  uma a uma! - Suas palavras suspendiam-se no ar,fazendo acrobacias trágicas.
- Eu amava receber essas cartas,era como um gole num líquido quente e doce  com gosto de campos de lírios,eu sei que isso é... real.


Decidida em sua constatação,subiu os degraus pesados em busca das cartas que guardara em um pote de mel do lado de sua cama. Estariam todas lá e ela saberia que era tudo tão real quanto sua razão de acreditar naquilo.
Choque. Chão.Tremor.

 - Deviam estar aqui! Eu podia jurar...


Potes vazios. 

Arabella encontraria em toda a sua vida,potes vazios esperando que alguém os enchesse com cartas de ninguém.

2 comentários:

- 7 de janeiro de 2010 às 16:56  

lindo! tão natural... me fez lembrar de como eu também já depositei todos os meu dentinhos embaixo do travesseiro, esperando pela fada falsa.

blur 8 de janeiro de 2010 às 03:13  

"Nessa idade as crianças são mais inimigas que amigas"

Verdade. Mas no fim elas só são instintivas, o que todo adulto deveria levar da infância.

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ahn?

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