Uma Moldura Barroca




As vezes, ele saia a tarde, mas quase sempre esquecia-se de despedir-se de si.
Costumava então, voltar os espelho das horas, buscando o pó dos dias para levar nas botinas pesadas.
Mas isso não é importante.
       A descrição não nos vale nada, desde que não se teça a partir dela o que a mesma, não nos diz.
O fato é que ele estava sentado ao umbral da janela cega, quase estranho quadro.
Sua têmpora apoiada aos joelhos que fraquejavam sob a não-perspectiva da perda.
Ele estava embebecido do escrutínio mágico da ausência.
A esposa viajara com o filho, ainda miúdo, a casa, sem que ninguém a manuseasse, só ouvia os sons de seus passos.
       Era necessária a descrição, para que o quadro sucessivo de imagens fizesse o mínimo de sentido aos seus olhos, que hão de ser tão distraídos  e presunçosos quanto os meus.
Ele, tampouco parecia apto a falar sozinho, sem cair na inocente ideia de que aquilo lhe parecia um absurdo.
   Absurdo não! Ele tinha ciência de que  todos faziam seus monólogos uma vez ou outra,  mas, talvez, por isso mesmo, ele se recusasse a comungar com tais hábitos mundanos.
Simplesmente, porque gostava de ser pioneiro, ainda que isso significasse ser arredio a tudo.
Seus únicos monólogos viviam e germinavam dentro dele e também ali, acabavam.
Nunca ocorrera-lhe a chance de verbalizar seus solilóquios e se a tivesse, provavelmente, não o faria. Porque era de sua natureza sentir o rescaldo após o orgasmo.
O maior de sua vida, o estilhaçar de sua personalidade já tinha sido.
      Agora era marido. Sério. Legítimo. Seguro.
Agora era pai. Amável. Herói. Exemplo.
Mas não teve a ideia de que algo era apenas sobre o que se é e ser dói.
Quando se é, toda a nudez e qualquer ato selvagem é protegido pelas brumas da noite.
Quando se veste o ser, engoma-se o livre, é natural que tão arisco bicho se acue em sua gruta e ali queira ficar.
        Levantando a cabeça e espiando por trás das lentes embaçadas... a janela,os tijolos vitorianos,a grama que crescia sem que as mãos leves de sua esposa a retirasse.
Olhava ainda o céu rindo para o chão e por fim o chão com seus insetos que julgavam pensar quando, na verdade, figuravam apenas como acidentes na invenção divina.
         Ele arfou pesado, antes de soltar uma risada frouxa e auto punitiva que ampliou-se no espaço do ar e de sua respiração:
    - Um escarro de Deus! Todos sem exceção! - Dizia, mais para os seus críticos invisíveis do que para si, pois já havia se convencido disso há muito tempo.
       Lembrou-se de que a mulher o deixara uma garrafa de Uísque e uma caixa de Havanas.
Levantou-se quase que mecanicamente, animal que descobre uma novidade e motiva-se a existir.
Deixando suas frases de efeito duvidoso sobre Deus descansar por um instante, ele levantou uma cortina diáfana, que revelou um quadro de médio porte que ali repousava intacto até ser despertado pelas mãos cheirando a tabaco caro.
   Envoltos pela moldura barroca, dois vultos sorriam diante de um consternado homem com um copo de uísque meio bebido na mão direita.
     Era como novamente ser tragado pelo sorvedouro do passado e não querer perceber-se nele.
Luzes verdes e vermelhas explodiam em sua cabeça enquanto as paredes pareciam sumir, dando lugar a um imenso exército de nuvens.
Ele não estava certo se deveria rir ou chorar.
Rir seria desmistificar a aura inexorável de todo o ocorrido.
E chorar, representaria dar a tudo uma dimensão que ele não queria admitir que pudesse existir.
  Como um simples quadro antigo, manchado, implorando para ser lançado as traças, poderia com seu toque embolorado acender-lhe um desejo cuja chama ele julgara extinta há tanto tempo?
   O único brilho particular do quadro estava mesmo nos sorrisos.
Quase esquecera-se do sorriso que havia adornado seus lábios um dia.
Seria possível que aquele sorriso tão simples e desajeitado houvesse escorrido de sua face e ido repousar esquecido sob suas células?
Ou ele morrera junto com a pele do jovem que fora um dia?
Ou ainda, será que ele se fantasiara do sorriso que hoje nascia em sua boca velha?
Assim austero, assim descrente. Típico daqueles que são sábios e experientes.
Um sorriso conhecedor, próprio daqueles que provaram da botica da vida toda a sorte de remédios, de elixires a venenos.
O Jovem que fora odiava a “ experiência”, detestava imaginar-se como algo menor do que ser “livre”.
     De repente, como se faltassem palavras para decidir o instante, ele desfocou os olhos do quadro e atentou-se para a moldura.
Era dourada, pesada, barroca.

Ele piscou do fundo dos olhos avermelhados.

        Dourada.

Sua respiração falhava a cada piscar dourado.

       Pesada.

Seu corpo vacilava e as pernas pesavam.

       Barroca.
   
Olhos. Respiração. Corpo.

A moldura o envergonhava, porque, embora fosse suntuosa e dramática, como barroca que era, ela também era cínica.
O que a imagem do quadro o provocara, o pasmo, a infantilização dissolvia-se na opulência oca da moldura que o envolvia.
E dentro daquele contraste ele se viu inteiro.
Dentro do paradoxo do quadro, ele viu sua própria condição de dona-de-casa ao contrário.
     Sem perceber que estava despertando, deparou-se com o asco de sua posição atual diante do que fora e do que sentira pelo mundo.
Suas impressões estavam lá fora.
O que havia amado e agora odiava, voltara a enternecer-lhe violentamente.
Por isso, ele havia saído de sua sonolência e resolvido encarar o quadro que tanto evitara olhar.
Porque sabia que se lhe dedicasse mais do que um olhar de relance, poderia apaixonar-se de novo, ainda que não fosse julho.
Pois as coisas aconteciam e só:
    - Acalma-te,coração abusado. - Ele dizia, permitindo-se dessa vez um diálogo rápido consigo, aquele que tanto negara, por ser comum.
Mas sua vontade já havia decidido-se e dali não seria mais a mesma.
   Deixando o copo na mesa central, pôs-se a escrever uma carta-bilhete que não era um torpedo suicida.
Sussurrando uma canção simples, pegou o casaco pesado e fechou a porta atrás de si.
O chão já era outro.
       Quando sua esposa chegou,  notou a ordem imóvel do espaço amplo deslocada apenas pelo bilhete ao lado do copo vazio.
 Com um sorriso terno e maternal, pediu ao filho que fosse ajeitar as bagagens no quarto.
Sozinha, ela reparou num detalhe que havia lhe escapado a principio.
O quadro, sempre tão bem guardado e oculto, encontrava-se despido.
Com a expressão gélida, para logo em seguida, tornar-se lívida. Ela não precisou sequer ler o bilhete para saber.
Então, ele havia decidido por ser o quadro e não a moldura e por caçar os sorrisos que um dia decidira com igual ímpeto, rejeitar.

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