Isqueiros


Ela não era uma mulher.
Não era um homem.
Percebo hoje, que ela gostava de cultivar certos maneirismos andróginos.
Ela gostava de marrom, embora seus olhos fossem poças petrolíficas.
Ela lia e translia Rimbaud, mas gostava de dizer que os franceses eram uns porcos impertigados.
Manchas na parede eram suas contadoras de fábulas, e como dizia a fábula...
Ela queria conhecer Sherazarde, muito embora eu pense que ela sempre quisera ser Sherazarde.
... Ou Verlaine, ou Napoleão, ou Lennon...
Todos eram seus joguetes típicos.
Um dia, eu a conheci.
Ela não tinha cores estranhas no cabelo e nem fedia a esgoto, mas é como se a sensação fosse essa.
Ela pediu-me fogo e eu a olhei por trás dos óculos naquela noite de neblina e ela piscou os cílios antes de encarar o ar frio.
Soltando uma baforada profana, ela semi-sorriu pra mim, antes de pegar o isqueiro e acender o cigarro com grandes ares de agente da máfia italiana.
Agarrei meus braços e acarinhei o frio volúvel.
Ela? Simplesmente largava-se no gosto de tragar.
E tragava com fúria, como não o faria nenhuma dama, como só faria um outro homem.
"A noite é sempre assim aqui?" - Ela perguntou-me com os olhos apertados pela nicotina.
"Assim como?" - A encarei reticente.
"Tão sem esperanças...?" -Ela suspirou grave para em seguida quebrar-se em uma gargalhada desproporcional ao ar austero e enfadonho da noite.
"Onde está indo?" - Perguntei depois do inesperado estouro.
"Não sei... quê me importa?"
Ela fez-me cativo ali.
A acompanhei naquela viagem.
Em todas as demais provavelmente.
Ela fumou muitos cigarros e eu comprei uma coleção de isqueiros.
Pouco me importava seu ar esquiziotípico, sua figura andróide-andrógina, se ela vestia-se como um cara desleixado, seu mau-humor e seu mistério latente.
Depois de sair da terra das mil e uma noites sem esperanças, eu a deixaria ser o quisesse.
Sherazade, Verlaine, Napoleão, Lennon.
Desde que eu pudesse segui-la e ser seu sultão, seu Rimbaud, sua Josephine, seu McCartney... ou apenas o fogo do seu cigarro barato.

Caminho Reto



Diziam que ela deveria se prevenir, usar casacos pesados e fugir das sombras que broqueavam o caminho.
Diziam que ela deveria ter fleuma, andar sobre ovos e manter a voz calma.
Nunca lhe disseram que o caminho poderia se bifurcar, nunca sequer pensaram que ela poderia escolher por vontade própria se ferir.
Então, ela escreveu sobre o amor e sobre como os homens enrolavam-se em dedos e sílabas para amar seus iguais, ela escreveu sobre uma curva, escreveu sobre a pessoa que a estaria esperando quando lá chegasse e no que ela mesma seria quando a encontrasse.
Mas era seu compromisso ser fiel a métrica e a rima, então ela chorou.
Porque nunca houve alguém na curva, tudo existia nas linhas mal traçadas de alguém condicionado a inventar a imagem mais bela.
E por achar bela a tal imagem, ela pensou que convenceria os outros, ela acreditou que os outros diante da perfeição a amariam por tê-la criado, mas nada parecia ser menos que disfuncional e violento para ela.
Ela jurou que não acreditava em nada que escrevia e continuou escrevendo cartas sem destinatário, continuou pintando seu rosto e enxugando seu pranto ressecado e sorrindo para a luz branca, brindando a todos com palavras de prodigiosa verdade, que eram todas mentirosas e desesperadas, porque pediam um ouvido que nunca existira.
Acolheu-se então no calor inapropriado de alguns braços, na luxúria provínciana de rapazes sonolentos, na caridade dos justos.
Em meio a turba de semelhantes indigestos, ela alimentou-se, e todos os restos de ternura eram como última esperança em mar de apatia.
Ela aprendeu que nunca poderia alimentar qualquer ideia de que a beleza tinha outro fim que não a morte, a morte... a morte era sua conhecida de longa data, sua amiga, seu pão, seu veneno lento e corrosivo.
Ninguém poderia jamais entender a vida sem encarar a frio os olhos âmbar da morte.
E tudo morria nela, como o sol que debanda ao entardecer e nos deixa com um gosto vazio do que seria a eternidade.
A curva que nunca chegaria, a fez parar no meio do caminho e aquela que quis muitas pessoas em uma só, terminou servindo chá para seus leitores invisíveis e mudos.

ahn?

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