Mantra




Ele gritava a todos os pulmões.
Só tinha forças para isto. Gritar.
O que poderia fazer se sua voz,por acaso,falhasse?
Não haveriam mais luzes de estrelas,gaitas em alto-mar e pássaros que falam e dançam na proa do navio.
Não.Aquilo parecia tão distante agora.
Distante de todas coisas que eram certas.
Podia ouvir ao longe a "Moonlight Sonata" tocando,tocando... mas ao contrário.
Porque.Por que? O céu planava quieto.Por quê?
Alternava-se com o tom tilitante de um balanço enferrujado.
Quando era criança,balanços enferrujados e cestas com pêras e torradas bastavam para ser feliz.
Por que agora ele queria mais?
Por que não poderia sentar-se ao pé da colina e sentir-se um tolo?
Porque o mundo mudara e ele sabia disso.Não havia no hoje e talvez não mais houvessem,tardes de outono e conversas obscuras frente a lareira.
Nunca mais haveria calor.
E aquilo queimava-lhe friamente.A garganta apertava e agora podia sentir o efeito do grito,junto com o topor do ácido que fazia sua cabeça turbinar e ferver em convulsões estáticas.
Cerrou as cortinas.Fazia um tremendo frio,daqueles frios que há tempos não sentia ou ouvia falar.
Silêncio.Dom.
Não podia simplesmente correr para longe,como fizera tantas vezes.
Porque não era apenas uma lembrança insistente,era um mantra.
-É apenas...eu! -Ele havia lhe dito com sua respiração trêmula e voz pausada.
Isso foi quando eles brigavam por quase tudo,há tanto tempo.
Ele podia lembrar-se com distinta clareza da cor das nuvens e do cheiro do estio e do feno.
Podia lembrar-se de cada espaço de tempo que gastara,cada respiração contra seu nariz,cada entreabir de lábios,cada lágrima de pó e chuva,cada cada de tudo.
Como ousara esquecer da liberdade que lhe caia das mãos?
Mas como poderia? E quem poderia?
-É apenas...eu.
A porta batia exausta e seu coração estava quieto como a lava de um vulcão inativo,mas poderia tornar qualquer coisa em pedra e tristeza.
As mãos enrrugadas tomavam a forma de seu rosto.
"Quando cresci?Quando foi que perdi o ar ingênuo e risonho?Quando foi que deixei o velho vento entrar pela frestra da minha porta sem reagir? 
Perguntava-se e não obtinha sequer uma resposta.
Ele continuava ali,a observar as primeiras estrelas despontarem no horizonte.Em que dia perdera a noção de tudo?
Surgia riscando o céu,um rastro de avião. Em que horário deixara de acreditar na vêemencia da palavra saudade?
Pintava de azul-oceano a noite e o céu convidava-o para dançar com a sua solidão.
Houve um tempo em que não se contava nada.
Cálculos eram desnecessários.
Ele lembrava-se bem,que nesse tempo costumava nevar e os flocos de neve ardiam na pele.
Mas isso foi em outro mundo,num mundo em que lhe bastava dançar,num mundo em que um sorriso por mais a contragosto que fosse,era sinal de uma nova canção.
E tudo era tão ontem;
Tão tolo e merecido.
Neste mundo,só existiam aqueles olhos pequenos e cheios de bosques a dizer:
-É apenas...eu!
Pior que um "Om",pior que datas de aniversário,pior,muito pior do que as letras de músicas ruins.
Aquilo dominava-o.E a expressão triste e sádica ao dizer: É apenas...eu.
Cruel e cru como um mantra que o redimia da dor de ser livre e de amar.
A tempestade passara.
Ele não mais sangrava em uivos.Apenas fumava um cigarro e lia em qualquer folha avulsa de um jornal um fato de hoje.
Todos os fatos eram os mesmos.
Ficaram velhas as insinuações e notícias.A tempestade acabou.
E creia-me,sua chama débil foi-se com a chuva.

Ciranda da meia noite



Aos cinco anos,já batia a cabeça nas paredes e aprendera cedo o que se tornaria um vício.
Chorar em banheiros,sem distinção de lugar,cheiro...Banheiros.
Aos seis anos já buscava sua própria janela mágica ou esconderijo secreto.
Cansada de sua procura,passou a inventar estórias e por algum motivo,acreditavam nela.
Queria insistentemente atirar-se de um prédio,mas não moravam em um.
Pisava em poças pelo doce sabor da transgressão e sentia sapos em seus pés e borboletas de todas as cores dentro da íris.
Não borboletas exatas.Não.
Eram borboletas de cor e fascínio criados.Que subiam dos arranha-céus as colinas de mármore e pó.
Tenra a idade,porém ranzinza ineterruptamente.
Fruto de certas disseminações de idéia antigas e de contradições permanentes.
A estupefata menina das tardes de sábado,que sabia que brincar com pedras era melhor do que ser gentil.
E ser gentil só servia pra ganhar mais geléia de uva com a qual poderia lambuzar-se e sentir a velha auto-piedade de seu ser sujo.
Viver era inalcansavelmente lúcido demais,prometido demais,subjulgar-se.
Subjulgar-se as bonecas de alma branca e fácil,que lhe sorriam sem oferecer nada de verdade.
Sem oferecer,ao menos o frescor dos dentes ou o hálito puro.
Ela não pedia nada,acostumou-se de tal forma a não ter coelhos apressados com relógios a caminho de uma festa da mesma forma que se acostumou a não ter coelhos,a não ter pressa,nem relógios ou caminhos,muito menos festas.
A alucinação da ausência de coelhos om fraque e cartola,chegou ao seu ápice,quando ela negou-se a comer coelhos de chocolate.
Fora uma resolução acertada,afinal.
De tartarugas ela não tinha piedade,muito menos de tartarugas de chocolate com estômago recheado de creme.
Tartarugas eram enfadonhas e dentadas.Coelhos eram apenas dentados e mágicos.
Sua alma perplexa,porém,ainda tinha o certo alívio de as vezes tomar chá.
O chá que a transportava para lugares frios,onde tinha a consciência mutante de que seu espírito era mesmo assim.
E que lhe fugia tudo das mãos,porque não tinha mãos capazes de suportar os frutos.
Nem os frutos,nem o pólen,nem as severas abelhas.
Simplesmente não suportava nada que lhe limitasse a respiração,porque os afluentes caiam sobre ela,
e seus pensamentos caóticos tinham a tediosa e bela sonoridade do nada.
Para ela,não havia coisa mais fascinante do que poder acreditar nas coisas,
com a inocência dos púdicos e a ânsia sempre crescente das meretrizes.
E deveria acostumar-se a isso mesmo.
Aquietar-se,por saber que era assim que a vida seguia.
Sem prestar contas ou consolar os que muito esperam dela.
Era certo que fora feliz,ponto.
"Fora",era novamente limitar-se e limites eram tão rígidos.
No entanto,fora feliz.
Assim como é provável que Dario perdeu a Guerra contra Alexandre.
Pouco juízo falho.
Feliz. Porque sobram restos de folhas caídas que servem para tapar o sol de arder nos olhos.
E por haver olhos para esconder do sol.
Também por haver um motivo para tapar os olhos: O sol.
Porque sabia que em torno disso,deveria haver alguma grande razão.
Algo externo a si,um motivo.
Um motivo para as coisas existirem.
E para provar que o mundo não era idéia sua,ou antes,que sua pouca madureza era incapaz de conceber algo que não fossem suas palavras cheias de saliva e prudência.
Antes que lhe dissessem o quanto não era bela e oportuna  para as coisas,ela já sabia que as coisas eram as coisas sem serem coisas,enfim...
Já sabia que olhar nada tinha a ver com a visão e que ser,costuma ser o oposto de existir.
Sua ambiguidade nômade tornava-lhe senão um sapo na trunda,uma coisa imersa em outra coisa inútil.
O que talvez ela mais quisesse,era vencer um dia aquele medo estável da melancolia que a espreitava e sentir menos repugnância por tudo.
Então,ela continuava,
Porque continuar era mais fácil que parar.
Sempre foi assim.
Dentro do túnel,Alice preferiu seguir o coelho,mesmo que este pudesse dissolver-se no ar,como a maioria dos sonhos.
Poderia dizer que tudo se valia ao alívio de saber-se viva e sentir-se estranhamente especial por isso.
Porque também ela fazia parte do mistério comum que une a todos,como um organismo.
Porque sabia-se cotidiana mesmo que somente na parte revestida.
Finalmente,ela poderia ansiar por sentir-se parte do mundo,não apenas como um aglomerado de moléculas,gases e vazio que preenche os vácuos.
Por isso,sentia-se plena em desacordo com o resto.
Porque sabia que era triste,mesmo sendo supostamente feliz.
Sua alegria era o cansaço do espírito habituado a melancolia nervosa e estéril.
Sob seu sorriso desregulado,
descobria-se a incessante busca pelo valor e sabor dos dias.
Todos os dias que não teve,porque tinha de ser;
Toda a vida que não era sua e lhe coube a missão de tomá-la para si.
Todo aquele cansaço de buscar ser associável a algo.
Toda a incomunicabilidade de não compreender a exatidão.
E achar a exatidão uma besteira.
Sob seu olhar,certas ternuras que a tornavam menos azul que o céu.
Uma saudade do que por descuido permitiu que se esquecesse.
A gratidão expressa em algum canto,por aqueles que a tomaram pela mão,
mesmo que fosse para arremessá-la na inanidade.
E a insólita promessa feita a menina sombria de braços levantados que a contemplava súplice,
porém sem pedir nada.
Mas aquela a qual sabia,por lei que criara;
que devia tudo.
Até mesmo a morte.

Tenho




Tenho que aceitar sua distância cômoda.
Tenho que aceitar sua falta permanete de nexo
e ainda assim adorá-la.
Tenho que aceitar a cor da sua íris e da sua retina,mutáveis.
Tenho que aceitar o esmalte dos seus dentes;
O seu sorriso torto,quase fugindo.
Tenho que conviver com a rigidez dos seus maxilares.


Pudera parar de apreciar os movimentos peristálticos
de sua garganta ao beber água.
Se pudesse ao menos
ignorar seu sobrecenho franzido,
seus olhos nublados,
o expandir de suas narinas.


Tenho que aceitar certas coisas...
... e acertar outras.


Tenho que aceitar seu espírito confuso.
Como tenho que acertar meus pensamentos suícidas.


Ter é tão segundo e tão incerto.
Ser,no entanto, é tão permanente que amedronta.
Sorrisos são belos,porque são são fáceis e rápidos e grandes.
Sorrir eternamente deve ser a pior forma de solidão.

Por isso quando meus olhos vermelhos e grandes perderem o pouco brilho que têem,terei de
acertar meus acertos errados.
E quando seus cabelos estiverem cinzas e seus olhos pequenos e azuis,tornarem-se opacos;

Lembrarei ainda da juventude que lhe foi roubada e de toda a beleza triste que morreu.

Linhas




Sinto que vivi minha vida inteira no meio fio.
E na hora em que pensei em voltar,o caminho havia se apagado atrás de mim e não adiantaria seguir as migalhas que sobraram dos meu dias.
Eu não encontraria a casa dos sonhos,estava certa disto.

Dos doces,sobrariam apenas as embalagens.
Era nítido demais.
E eu não aprendi a ver com nitidez;
Porque amava o sol e ele me odiava,
Fazia arder a minha pele e me deixava com os olhos pequenos.
Fui educada a ser cega.
A cegueira era meu dom único.
E quem protegeria meus olhos?
Quem sentiria falta deles?
Quem poderia amá-los?

De tantas quedas,qual seria o chão?
Por que fui condenada a nascer com órbitas imensas e aguadas?
E por que fui tentada a entender porque o sol era grande e belo e mesmo assim capaz de ferir a vista e a memória?
Porque não fui ensinada a nada,porque o mundo se apresentava a mim como uma idéia nova a cada instante.
Eu não sabia enxergar.
E vejo agora,como era sensível a luz e as palavras.
Como era euforicamente triste.
Porque me acostumei a caminhar entre perdas e habituar-se ao caminho é perder-se.

O cansaço que cresce só não é aterrador,porque domina.
Meus próprios domínios ébrios se entregavam a ele.
Por isso,não posso conviver com meu silêncio.
É que para mim,era uma canção que por descuido parei de ouvir.

ahn?

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