Quando Alice Não Voltou


Decidi passear dentro de mim.
Sem esquecer, é claro,  de carregar um guarda-chuva, a maior proteção que devemos ter a mão para lidar com os sentimentos externos.
Andei até  meus pés não sentirem mais a dor de andar e fui parar na frente de uma casinha, cercada por um exército de gafanhotos que bebiam leite com mel.
-Você vai se perder, Alice. E lembre-se de avisar aos tolos de pedra de que nada aqui é real e que a meia noite, talvez, eles ouçam o canto de uma pássaro negro ou uma melodia ao contrário.
-Isso deveria ser tão irônico... - Eu balbuciei de dentro da minha vergonha de estar dentro da minha própria garganta.
Os gafanhotos deram-me um sinal de partida e diante dos meus olhos afoitos, transformaram-se em besouros prateados, espécimes raros aqueles.
Continuei procurando dentro de mim mesmo, o fel com o qual, constantemente, eu me martirizava e  onde eu escondia minha óbvia falta de sorte e visão.
Haveria de estar em algum lugar!
Um homem carregando uma pequena flauta seguido de um sátiro bem munido de um alaúde censuraram-me por estar atrasada para o casamento.
-Que casamento? - Eu perguntei distante, como se não estivesse dentro de mim.
- O casamento, menina tola, só existe um. - O homem disse, antes de soltar uma nota impetuosa de sua flauta.
- Só acontece um casamento por ano e infelizmente é o errado, você não sabe escolher!- Continuou o sátiro a exemplo de seu companheiro, tirando dessa vez, um trecho melancólico de seu alaúde.
-Eu estou perdida, só sei que comecei com uma viagem pela minha garganta, mas continuei descendo e vi gafanhotos estranhos, nem sei que casamento é esse, meus senhores. - Eu tenti formular alguma coerência dentro da incoerência na qual havia me absorvido.
-Você gosta de preto? - O Homem.
- Claro que não, seu imbecil, ela está vestida de vermelho. - O Sátiro.
-  Ela está com as cores de Ares! - Um sorriso do Homem
-Porque hoje é o dia de Ares, estúpido!! - Um revirar de olhos do Sátiro.
- Eu suponho que tenham escrito meu nome primeiro para eu ser o chefe, não? - O Homem.
- A estória ganha o rumo que quiser, como as estradas que levam a Igreja do casamento.- O Sátiro.
- O CASAMENTO! Estamos atrasados, muito atrasados, tudo bem, garota, ache um vestido preto e esteja o quanto antes na Igreja. - Os dois.
- Mas como acharei um vestido e que caminho devo tomar, onde ficam essas estradas?- Eu.
- As estradas estão em todo o lugar, mas você deve saber onde deve saber a onde quer chegar, adeus, menina tola.! - o Sátiro sorriu enigmático.
    De repente arrastaram a poeira das botas no vento e nunca mais se ouviu falar deles, ou fui eu quem nunca mais ouvi?
     A frente de uma carroça abandonada, achei um vestido de feltro, preto e sóbrio.
Achei bem apropriado para o casamento, mas uma ideia não me abandonava de todo, por que diabos as pessoas deveriam ir de preto, oras, isso era casamento ou uma comitiva de enterro?
-Os dois, minha filha.
    Respondeu-me da escuridão, uma ave de coloração esverdeada.
Meu susto foi tamanho que deixei cair o vestido que imediatamente aderiu a minha pele sem que eu precisasse vesti-lo.
-Estranho...
- Já escolheu o caminho, menina Alice? - Ela sorria como uma avó.
- Falta-lhe os óculos. - Eu não pude me impedir de falar.
    Imediatamente um par de óculos pousaram em seu rosto, aparados por seu longo bico.
- Tudo o que quiser, minha cara, afinal, tudo isso também é seu, estamos dentro de você.
-Como você sabe?
- Eu sei de muitas coisa, Alice, como sei, por exemplo, que você quer ir ao casamento  e não sabe que caminho tomar.
-De fato. - Reconheci, pela primeira vez sentindo carinho por “alguém” dali.
- Simplesmente siga, vai reconhecer o caminho quando chegar lá.
    Eu fiz o que a sorridente ave avó de óculos me disse, desci, desci, desci, sem escadas, sem descidas, sem ladeiras...
Até que passei por um campo aberto, parecia uma página extraída do Kamasutra, havia ali um enorme gigante andrógino deitado, sua face e sua posição indicavam que estava num momento de êxtase e homem e mulheres copulavam em suas coxas, subiam por seu peito e deleitavam-se em sua genitália dupla.
Quando cheguei mais perto, alguém quis me puxar para juntar-me aos meus próprios delírios, respondi que não, que tinha de chegar ao casamento.
O garoto despido e orgulhoso de sua nudez indicou-me um atalho, no qual, eu encontraria um objeto voador vermelho.
Já dentro do objeto, acionei diversos botões, um deles haveria de ser o certo.
Depois de um vôo tímido, entrei na estrada certa, ou seria a errada?
Naquela altura da minha viagem, não importava mais.
Avistei uma grande catedral com sombras góticas, sua fachada estava enfeitada com flores negras e vermelhas.
Um árvore carregava a seguinte inscrição “ aqui morre o amor”, fiquei com medo de continuar, mas segui, mesmo temerosa.
 Havia poucas pessoas na Igreja, um total de 9, além do padre e dos noivos.
A moça exibia um sorriso angelical, mas meu peito queimava, não era justo.
O moço parecia pensar como eu, assim como todos os presentes.
Letras de música atravessavam meus olhos, melodias de Bach, Chopin e também o som cálido dos pássaros de inverno.
    Então.
Não foi nada além de um olhar vazio e doente pousado numa xícara de chá, e a esperança de entender morrendo ali.

Quiça



Eu vou vivendo como o dia vai sumindo,
sem perguntar porquê.
E se um dia por acaso, me perguntarem,
direi que tenho orgulho de não saber.
Porque a ideia que faço de saber vai além do que posso ser.
E esse ser que é coisa atoa,
que vira vexame, sem nunca deixar de o ser.

Vou levando na face,
a falta de cor,
o céu verdejado,
o desleixo e o frescor.
Porque nada no mundo cresce por saber,
E que não cresce, tampouco sabe.
Ah! Deixe de lado a falha da rima mal feita!
Quem me dera só passar e dizer... Quiça!

Os Escolhidos









Desciam pelas encostas, juntos, como cães,
Com medo de perderem-se.
Todos retirantes. De cor, nome, fome e penar.
Exibiam na face murcha e nos lábios roxos, o sorriso triste dos que buscaram em vão a sonhada Canaã.
As crianças alheias a melancolia da tarde magenta e ao sol morrendo no horizonte, penduravam-se as saias em trapilhos das mães.
Iam assim, deixando atrás um rastro de sua sagrada impotência, como formigas serpenteavam pelo chão árido e choroso.
As mulheres, mães sem ventre,
Os homens com a barriga armada de um exército de vermes de toda a sorte.
A tarde sangrava em silêncio e eles seguiam seu destino de só seguir, sem dor que valesse o destino da espécie, sem chão que valesse a dor da carne.
No fundo, deveria ser assim a promessa que Deus lhes fizera, a tal promessa de que existir era bom
Mas Deus não os avisara que para eles, existir deveria ser o mesmo que durar.

ahn?

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