Palavras de desamor


Pagava sempre o preço por querer demais das coisas, aspirar por segredos velados e ilusões caídas. Ela nunca seria amada. Sentia-se como Psiquê quando a beira do penhasco íngreme. Será que um dia ela beberia o néctar divino ou a menos teria asas para abandonar a Terra e pertencer aos ventos? Alguém algum dia sentiria piedade de sua frágil alma que podia se partir repentinamente como partem-se as asas de borboleta?
Apenas queria conseguir parar de infligir dor a si mesma, queria parar de rasga as carnes com as unhas sujas, queria parar de almejar pelo infinito. O infinito nunca quisera ter com ela. Deus nunca mostrara sua face mais cândida. Nada ali poderia salvá-la da queda. Ela nunca seria amada.
O que há de sólido numa vida não iluminada pela luz ofuscante do amor? O que nas almas senão a pureza da ternura? Por que o mundo lhe era tão hostil? Por que não poderia despertar uma torrente de sentimentos ternos em alguém? Por que vivia sempre no quase, no talvez? Por que seu amor era ultrajado, deixado nas encostas e levado pelo vento? Por que não reconheciam sua procura, por que não lhe brindavam com os louros da redenção? Por que não lhe dedicavam uma ária, um madrigal? Por que tinha que viver na unilateralidade? Por que tinha que fingir força, fingir uma miríade de outros nobres princípios? Por que lhe era destinado o falho? Por que não gastavam palavras doces com ela? Ela nunca seria amada. Era sua sina perambular pelos confins da Terra, encontrando muitos que ouviriam sua palavras e seus cantos. Era sua sina encontrar alguns que a admirariam pelo que ela aparentava ser, mas que não ousariam amá-la pelo que era.
Ela sabia que vivia uma ilusão, ela sabia que seu coração sangraria milhares de vezes antes que encontrasse o elixir que a redimiria de todos os seus pecados. Ela, entretanto, não diria inverdades. Ela amaria mesmo que amar lhe custasse o sal das lágrimas, ela sofreria a dor dos desesperados e algum dia, quando a Grande Mãe acolhesse suas preces, ela descobriria seu caminho e toda a dor de qualquer rejeição se transformaria na força necessária para erguer suas asas e voltar ao seu lar.
Mesmo que levasse tempo, mesmo que lhe custasse os últimos lampejos de luz, mesmo que nunca fosse amada, beberia da fonte de vida eterna e seu canto ecoaria pelo prados, alimentando todas as almas famintas e sedentas que esperam por cartas que nunca chegarão.

Cólera

                        
                             Luz bruxeleante tingindo um quarto parisiense e sob seu escrutínio um jovem escritor de folhetins baratos suspirava em profundo speelen:
- Não há nenhuma esperança aqui, meu caro. As fragéis linhas que a sustentavam romperam-se há tanto que ninguém lembra-se exatamente de sua forma.
Eu costuma ouvir a todos, os de fala macia e os de timbre arisco, mas eu perdi o discernimento necessário para diferenciar vozes. Exceto no que diz respeito as que me acompanham por dentro. Essas sempre que possível se pronunciam. A vida de alguém como eu nao é muito diferente da vida das floristas e dos bêbados espalhados por todos os botecos e cassinos dessa cidade enferma.
                          Entenda, criança: Todos nós estamos fadados a cólera, a lepra, ao tédio e a corrupção.Não há um nômade nessa vida que não tenha como fim a escassez e a doença. Eu sei que não costumam ensinar isso nos hospitais, sanatórios, escolas e repartições públicas. Mas como sou um louco assumido, posso dizer-lhe sobre todas as coisas que corariam a maçã do rosto da mais depravada e decaída meretriz.
                           A pior notícia que eu posso te dar não se compara as coisas que já sabemos e procuramos ignorar. Não há beleza aqui, rapaz, mas também não há beleza em lugar algum e em pessoa alguma.
                          O que amamos nas pessoas não é a parte que julgamos bela, o que amamos em cada um  é nossa fraqueza exposta em carne e sangue e anunciada em vísceras. O que amamos e queremos é a sordidez e a vilania.
                         Eu cansei de estar aqui, meu jovem... Mas eu continuo por covardia, admito. Continuar é minha maior prova de fraqueza, fraqueza das ditas espirituais, não só nos ossos. E eu te escrevo, agora, as vésperas de partir, porque me veio de repente a ideia mórbida de que ninguém lembrará os meus pesares e memórias quando eu partir e veio-me assim por estalo, a impressão de que caberá apenas a mim a tarefa de limpar os destroços. Não há mais ilusão aqui também, mas não se assuste o que te comunico nesses gestos pobres não é tristeza, que esta já não sinto, é antes um profundo e sofisticado nojo, produto talvez das vielas imundas dessa cidade prostituta. Nojo latente de toda a criatura que sai por aí a disseminar crenças e construir templos em nome de uma honra corrompida. Eu não tenho mais medo, jovem. 

                        No fim de tudo somos todos crianças brincando de imaginar monstros no carrossel do mundo. Eu estou tentanto seguir a linha, estou preenchendo os dias com ácido e poesia, mas a vontade de sangue as vezes subrepuja meus instintos civis. Quando a fera vem a superfície e o caos reina é difícil florescer as acácias.Eu ainda tenho acácia nas mãos, mas a serpente sagrada dorme em sono leve sob os meus pés.

Asas de Ícaro




Sejamos honestas pelo menos pelo curto tempo que nos resta neste meio-fio de intrigas que é a vida.
Não tenho como lutar contra você, simplesmente porque não temos as mesmas armas, seria leviano da minha parte dizer que não possuo arma alguma, até as possuo, mas são ínfimas perto das suas, admito.
Eu não quero ouvir seu nome porque me soa mais fatal do que qualquer canto de pássaro de mau agouro no silenciar das horas.
Tenho grande vontade de matar-lhe a presença viscosa que se embrenhou pelos meus poros.
Acontece que para matar-te, precisara antes extinguir em mim o que há de humano e não sei se sou capaz de tão grande ousadia.
Há muito mais do seu fantasma aqui do que eu qualquer lugar, e não quero te ceder nada, não quero que me veja, não quero sentir-me fraca e estéril perante a luz.
Não quero.
Embora saiba que você não é feita de luz.
Quem é feito de luz pode até descer as zonas infernais, mas sempre possuirá uma réstia daquilo que antes fora.
Mas quem nasceu para os escombros, como poderá continuar?
Quem nasceu para o alarde, como poderá silenciar?
Eu não sei como continuarei, falta-me fé no mundo, grandes olhos sadios. Falta-me um pouco da vida que insistem em me ordenar, desregrar e por vezes roubar.
Meus versos antes saídos da mais pura inocência e ardor, agora saem um tanto ressabiados, tímidos e reticentes.
Que dirá o mundo deles?
O que dirá você de mim?
Sei que não tens senão um ódio sem vista de mim. Sei que me odeias pelo posto e não pela pessoa, sei, aliás, que todos os meus desafetos me odeiam pelas máscaras e falas bem interpretadas, sutis, seguras e não pela sensível e medrosa criatura que se põe pequena diante ao mistério do mundo.
Não, a cabeça que querem exposta na praça é a da rainha soberba e cínica, não da criança prematura, com a ossada frágil e com medo de ser constantemente motivo de chacota e incomodo.
Eu entendo a imagem que os outros têm de mim, mas se todos penetrassem no interior soturno do ser que me habita a alma, veriam todas as flores que tento podar.
Encontrariam as árias que danço quando ninguém vê.
As linhas dos livros que me enternecem o coração.
Veriam as nuances de luzes de tonalidades abstratas flutuando dentro de mim.
Talvez isso ainda não tirasse o asco que encobre toda a minha persona non grata, mas a tornaria mais humana e por assim ser, susceptível as falhas a que todos estamos sujeitos.
Agora, presa as regras do dia, a espera inútil em tudo que não seja óbvio, previsível e esperado, eu confesso que tenho medo de você.
Medo de que qualquer ação tua premeditada ou não possa roubar-me o universo, medo que qualquer palavra que gere esperança possa sufocar minha alegria oscilante.
Eu temo porque os que não temem já enterraram suas asas, e eu ainda tenho asas mesmo que esgarçadas pelos altos vôos e pelas quedas maiores ainda.
Não me retire o sol porque sem ele eu residiria no fundo do oceano e partiria todo o núcleo da Terra ao meio com minhas intempéries.
Não me tire a luz, pois eu obrigaria todos os mortais a reaprender a ver no mais profundo e derradeiro breu.
Tudo o que escrevo, sinto e te mando por cartas não-escritas não são doçuras, singelezas, pedidos, súplicas ou coisas dessa ordem.
São ameaças.
Não serei um novo Ícaro de asas partidas e flamejadas por almejar um pouco do fulgor do sol.
Embora tão santa como o desapontar de um novo dia, nas minhas ondas eu escondo monstros e desfiladeiros.


River V


No Ganges, no Nilo, no Danúbio ou no Prata? Em qual grande rio do antigo mundo perdi minha clara essência.
Essência das coisas deste mundo, essência do que é além. Essência do que virá e sangrará.
Terá sido no Tigre, no Eufrates ou no subliminar Estinge?
Onde eu perdi a vida?
Em que arrepio, em que febre? Em que extrema renúncia? Em que golpe repentino de fúria?
Eu vim andando por tantas terras sem nome, por tantos caminhos descarpados.
Eu vim tombando com pés de Édipo entre os baduínos, ouvindo o canto das harpias e das sereias. Eu vim esperando achar as Hespérides.
Mas acima de tudo, eu vim como quem tem sede do que não se bebe, fome do que não se oferta e tem ganas de vencer o horizonte vacilante.
Eu extraí do Ganges toda a iluminação e aniquilação do "eu" que pregavam os homens das montanhas, eu vi Shiva dançar entre os templos do Hindu Kush e fui feliz.
Eu sorvi do Nilo a força de mil braços cobreados e toda a fé da grande ísis. Todo o zelo e abnegação da esposa-mãe de Osíris.
Eu bebi do Danúbio o sangue rubro-anil  de todas as batalhas do passado, deleite-me com a ascensão dos reis e a queda dos tiranos.
Do Prata, eu ressuscitei mil virgens sacrificadas em honra ao sol e de seus corpos eu fiz estrelas.
Mas o que eu perdi e não volta, o que é exato e eu ignorava é a minha própria centelha divina, é o nexo que preferi ignorar.
Agora o Estinge me espera. Cabe ao sábio Susserano do Mundo Inferior decidir se mereço estadia infinda nos Campos Elísios ou se devo perecer eternamente em meio ao caos do Tártaro.
No entanto, a decisão entre respirar a vida ou sufocá-la fora sempre minha.

ahn?

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