Asas de Ícaro




Sejamos honestas pelo menos pelo curto tempo que nos resta neste meio-fio de intrigas que é a vida.
Não tenho como lutar contra você, simplesmente porque não temos as mesmas armas, seria leviano da minha parte dizer que não possuo arma alguma, até as possuo, mas são ínfimas perto das suas, admito.
Eu não quero ouvir seu nome porque me soa mais fatal do que qualquer canto de pássaro de mau agouro no silenciar das horas.
Tenho grande vontade de matar-lhe a presença viscosa que se embrenhou pelos meus poros.
Acontece que para matar-te, precisara antes extinguir em mim o que há de humano e não sei se sou capaz de tão grande ousadia.
Há muito mais do seu fantasma aqui do que eu qualquer lugar, e não quero te ceder nada, não quero que me veja, não quero sentir-me fraca e estéril perante a luz.
Não quero.
Embora saiba que você não é feita de luz.
Quem é feito de luz pode até descer as zonas infernais, mas sempre possuirá uma réstia daquilo que antes fora.
Mas quem nasceu para os escombros, como poderá continuar?
Quem nasceu para o alarde, como poderá silenciar?
Eu não sei como continuarei, falta-me fé no mundo, grandes olhos sadios. Falta-me um pouco da vida que insistem em me ordenar, desregrar e por vezes roubar.
Meus versos antes saídos da mais pura inocência e ardor, agora saem um tanto ressabiados, tímidos e reticentes.
Que dirá o mundo deles?
O que dirá você de mim?
Sei que não tens senão um ódio sem vista de mim. Sei que me odeias pelo posto e não pela pessoa, sei, aliás, que todos os meus desafetos me odeiam pelas máscaras e falas bem interpretadas, sutis, seguras e não pela sensível e medrosa criatura que se põe pequena diante ao mistério do mundo.
Não, a cabeça que querem exposta na praça é a da rainha soberba e cínica, não da criança prematura, com a ossada frágil e com medo de ser constantemente motivo de chacota e incomodo.
Eu entendo a imagem que os outros têm de mim, mas se todos penetrassem no interior soturno do ser que me habita a alma, veriam todas as flores que tento podar.
Encontrariam as árias que danço quando ninguém vê.
As linhas dos livros que me enternecem o coração.
Veriam as nuances de luzes de tonalidades abstratas flutuando dentro de mim.
Talvez isso ainda não tirasse o asco que encobre toda a minha persona non grata, mas a tornaria mais humana e por assim ser, susceptível as falhas a que todos estamos sujeitos.
Agora, presa as regras do dia, a espera inútil em tudo que não seja óbvio, previsível e esperado, eu confesso que tenho medo de você.
Medo de que qualquer ação tua premeditada ou não possa roubar-me o universo, medo que qualquer palavra que gere esperança possa sufocar minha alegria oscilante.
Eu temo porque os que não temem já enterraram suas asas, e eu ainda tenho asas mesmo que esgarçadas pelos altos vôos e pelas quedas maiores ainda.
Não me retire o sol porque sem ele eu residiria no fundo do oceano e partiria todo o núcleo da Terra ao meio com minhas intempéries.
Não me tire a luz, pois eu obrigaria todos os mortais a reaprender a ver no mais profundo e derradeiro breu.
Tudo o que escrevo, sinto e te mando por cartas não-escritas não são doçuras, singelezas, pedidos, súplicas ou coisas dessa ordem.
São ameaças.
Não serei um novo Ícaro de asas partidas e flamejadas por almejar um pouco do fulgor do sol.
Embora tão santa como o desapontar de um novo dia, nas minhas ondas eu escondo monstros e desfiladeiros.


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