Bilhete do Abismo




1, 2, 3.

3?

...
6.

9.

Muitos.
Preciso lembrar-me de um lugar.
Muito mais que isso, preciso lembrar-me de uma vida toda que perdi na greta de uma porta imponente e antiga.
Preciso respirar, aspirar, respirar, negar a doença,  dizer sim a vida.
Mas antes de tudo isso, eu preciso mesmo e talvez com mais verdade, pegar o livro ilustrado com o velho professor lunático de tweed mostarda e perguntar-lhe se por acaso sua musa costuma comer sementes de árvores com cara de monstros e voar com silfídes vermelhas por um bosque qualquer.
Eu preciso sentir o gás escorrer pela minha garganta e ver a fumaça expelida pelas minhas narinas nas noites frias.
Eu preciso reaprender sobre latim e  botânica antes de ir embora.
Eu preciso beijar os seus lábios antes que a alvorada floresça e eu esqueça seu nome.
Eu preciso me lembrar como era chorar, lembrar como era viver sem as cinzas de um rancor prematuro.
Eu quero ter a consciência da morte, o pungente e letal veneno correndo ébrio pelas minhas veias, invadindo cada milímetro da minha corrente sanguínea já infectada pelo vírus.
Eu preciso cantar algumas canções novamente, para guardá-las no ar por um tempo.. elas sobreviverão a mim.
Quisera por um inócuo momento saber o sentido amplo e sereno da liberdade.
Porque pra mim, ela sempre foi um pássaro de asas partidas.
Quisera então que a frágil ave levasse-me em seu vôo intrépido pelos ares do infinito azul.
Quisera que meus olhos secos produzissem a lágrima derradeira ao ler Sylvia Plath uma vez mais.
Quisera sentir todos os sentimentos do mundo, dos mais torpes e profanos aos mais imaculados e santos e dizer todas as mentiras e verdades que eu poderia dizer as pessoas que amei e odiei.
Quisera tremer no frenesi de milhões de orgasmos, todos os orgamos de todas as pessoas do universo, das prostitutas virgens às freiras corrompidas.
E o gozo do mundo explodiria em minhas células corroídas e atrofiadas antes que a vida abandonasse de vez esse coração abusado.
Eu teria então, ao mesmo tempo, a dor e o fulgor da vida, estando a um suspiro da morte.
Eu descobriria a Atlântida escondida, dançaria com as valkírias e com os eunucos persas.
Eu suspiraria segredos aos jacobinos e acabaria na guilhotina, eu fumaria o ópio dos poetas malditos e satânicos e comungaria dos seus segredos sobre a morte que agora vejo pela janela.
Uma águia sangra no horizonte e como uma ironia ou uma charada mal concebida, eu sangro e enfraqueço.
Minha fraqueza é subjetiva e imoral.
Por querer ser todos, eu descobri a criatura estranha e intempestiva que sempre habitou dentro de mim.. sem que eu desse notícia dela.
Eu que quis conhecer o mundo com os pés ardendo e os olhos cansados, o conheci através de pardas páginas mudas e versos esquecidos.
Eu que tanto amei a morte, descobri a vida.
E no último suspiro, eu entendi tudo.


...











9.

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