Morrer e matar.
Não somente pela estatística;
Como fez o menino gordo que tomou veneno porque queria ser químico.
Sua ambição de vida estabeleceu uma relação simbiótica com sua morte.
Coisa estranha.Aquela estranheza que se convertia em pele,músculos,dentes e água.
Aquela estranheza de quem se deixa ler,porque não pode se despir aos olhos da própria solidão.
Ao olhar a imagem desleal e mutável de si,caiu do estrado.
Quebrou os dentes e a alma.
Um pouco de morte dos sentidos,a falsa decência e uma certa inclinação à inveja á molho branco.
Seu cardápio não era útil a nada,nem a ninguém.
Quando vislumbrava seu laboratório,a única vontade que tinha era a de se auto-explodir e sujar os ladrilhos com sua carne autofágica e com a comida contaminada.
Queria ver a carne flácida e viscosa corroer-se e tombar no chão tornando líquido tudo o que fosse sólido,até mesmo a verdade.
Então não poderia mais ouvir aqueles chingamentos:
-Sujo! -Cuspido e declarado em silêncio pela professora do primário,que franzia as sobrancelhas e a alma por trás dos óculos.
-Gordo,baleia,saco de areia! - Dito pelos doces alunos que entregavam maçãs frescas à desdenhosa professora.
Portanto,matou-se.
Procurando livrar-se do "só".Da mania de escrever "só" e de viver este "só" sem sê-lo realmente e ter a única companhia de dejetos no seu cérebro,formado por neurônios gordos.
O sentimento mais verdadeiro que era capaz de sentir,além da fome,era o cansaço.
E mesmo assim,o sentia com a mesma incapacidade que tinha de locomover-se.
Porque o braço enroscava na barriga,a barriga gemia de fome,os ossos sentiam o peso da massa,as pernas tremiam,o suor colava os pelos ao corpo,a respiração era interrompida,os olhos vacilavam,a perna roçava a outra,os pés debandavam em fuga.O menino caia ao chão.
Ali estatelado,como parte de alguma coisa.
Ali,tão nulo como a tinta das faixas de pedestres.
Nulas,mas essenciais.
Percebeu-se então,como o grande mártir de todos os meninos sujos.
Viu-se como o grande Messias que savaria o mundo,por crer.
Vaidoso e cheio daquela segurança que tem as mães ao morrerem ou as freiras em auto flagelo,levantou-se.Um rei dos imundos.
O que se viu em seguida foi o sangue azul que jorrava aos borbotões e os sons de uma"ária".talvez "Pigmalião".
O menino das maçãs cheias de cobiça,contorcia-se aos urros no chão.Os golpes deferidos pelo gordo tinham causado náuseas e pouco demorou para que ele se perdesse dentro de si por completo.
Ao contrário do que seria de se supor,o gordo não ajudou-o.Sequer olhou a criatura inerte e podre a sua frente.Levantou os olhos e cheio de um orgulho,que só ele,por ser Adônis ao contrário poderia ter,dirigiu-se a sala.
A professora se escondera atrás da mesa e gritava com os dentes cerrados:
-Sujo!Monstro!Maldito!
Os outros alunos espantados.
De repente,a sala de aula tornara-se um território apache,onde os cordeiros queriam fugir do lobo de olhar manso e zombateiro.
Porém,o lobo nada fez.Com a mesma serenidade,arrumou os materiais escolares e com a bolsa pequena se comparada ao seu corpo,saiu pela porta,deixando na sala o silêncio,que para ele era respeito.
Finalmente,enxergaram a marca com a qual Deus o havia ungido.O Mártir. O Santo.
Os olhares estarrecidos eram a submissão dos falsos santos de Sodoma e Gomorra,
A adoração dos cortesães prostitutos da Babilônia.
Sentia explodir em si,como uma grande revelação,uma comunhão,uma paz que ele sem saber julgar,julgava incomum.
Sentia-se especial.Único e Uno.
Ele era a verdade e tudo era ele.
Descobriu por fim,que era Deus.
Sim! Essa era a grande missão.
Ele soube-se Deus,porque assim era.
E por assim dizer,ele poderia destruir o mundo se assim quizesse.Não queria.
Queria mesmo aquele silêncio de adoração dos pecadores vils daquela classe.Ele era Deus!
Queria ver os dentes amarelos da professora cética.Ele era Deus.
Queria ver o sangue (que ele criara) escorrendo pelos orifícios do menino das maçãs.Ele era Deus.
Tudo chegaria ao fim.
Se a estória não tivesse aquele começo que leva inevitavelmente quem a recria a querer combinar o fim e o ínico,como se já não estivessem ligados pela própria desventura da narração.
Seguindo regras e estatísticas;
Era matar e (ou) morrer.
Um vidro apenas era o suficiente para provar ao mundo que ele era Deus.
Ele não precisava saber disso.Acaso Deus teria dúvida sobre ele mesmo?
Deus existia e sabia desde o ínicio da separação dos estômagos que era ele e pronto.Ele era Deus.
Mas queria,o gordo,agora recém Deus,queria revelar ao mundo seu poder ultrafurioso.
Queria dizer: - Sou eu! Javé!
Por isso bebeu o veneno de rato que ficava sobre o armário da cozinha.Era Deus.
Não morreria por um veneno que corroia apenas as entranhas dos mortais;
Bebeu junto com o veneno,a glória.E a glória nunca pareceu tão amarga e um veneno barato nunca pareceu tão doce.
Não doía.Conformou-se.Era Deus.
Bebeu até não mais ter garganta para cuspir.
Foi como um soluço.
Sou Deus.
Morreu para ser químico.
Anunciaram a morte de Deus sem alarde,mesmo para a santa e escolhida mãe,Maria da Anunciação,a morte do filho pródigo era mais alívio do que tristeza.
Poupara a senhora rígida,o trabalho de explicar ao filho santo que ele não poderia cumprir seu destino divino.Ele tinha um tumor no lóbulo esquerdo do cérebro e com sorte e por ele ser Deus,ainda teria seis meses de vida.
No fim,descobriu-se na autópsia,que dentro de seu grande e gorduroso coração havia uma substância em excesso,que podia ter culminado no acesso.A essa substância estranha deram a nome de "Esperança".
O Verdadeiro Deus
Algo Como a Paz
Era uma paz calma,suave,leve.
Uma paz que não se dá para descrever.
Era um abandono maleável;
Uma fúria terna,uma masidão violenta.
O vento sedava minhas forças.
O sol sereníssimo despendia-se sobre mim.
Eu parada a espera de algo grandioso.
O que? Nem eu podia dizer.
Eu estava só e a solidão parecia ser o melhor lugar do mundo para mim.
Não que eu gostasse qde me afastar das pessoas,mas a questão era:
Até quando suportaria viver com elas?
Quando eu estava em mim eu conseguia ouvir as respostas confusas e aburdas da minha mente desgovernada.De outra maneira,eu não conseguiria.
Sozinha,eu podia ouvir a cadência das batidas frenéticas do meu coração.
E podia dizer: - Sim! Existe vida aqui dentro.
Nunca estive realmente certa disso.
Mas,eu podia afirmar,que de alguma maneira aquilo parecia muito com o que eu costumava chamar de paz.
Não era só o silêncio que era capaz de me seduzir,atrair...
Era também o sentimento de que de certa forma,eu não podia aqui sozinha,com o corpo comprimido ,os olhos seguindo os veículos da estrada e a cabeça encostada no tronco da árvore,causar nenhum dano a quem quer que fosse.
Talvez aqui,eu me sentisse em paz,porque eu me anulava,
Limpava a mancha suja que eu era para os outros e tinha a rasa consciência de que o abismo parecia diminuir pra mim.
Eu era apenas mais alguém sem rumo,mas por que para os outros parecia doer menos?
Por que eu deveria ter sempre a noção exata e angustiante do tamanho e da proporção do meu sofrimento?
Acaso uma gota de água do rio sabe que se perderá para sempre ao encontrar o mar?
Acaso a abelha tem consciência de que morrerá ao picar um ser humano?
Porque nós sabemos,dói.
Porque queremos nos livrar disso,a dor é mais pugente.
Eu poderia dizer isuportável,
Só que seria demais.
Se fosse assim,eu não poderia sequer dizer isso,porque não suportaria a dor de tantar explicar a própria dor.
Ou a agonia suave de inventar uma paz que pudesse nascer no meio de tanta lamúria,como
Uma flor (fria e cinza),no meio de uma pedreira.
Era assim;
Uma paz cinza,ocre.
Uma paz que não se ardia
Pelo horror que gira,apelidado de mundo.
Uma paz sem fases.
Que tenta explicar a si e confunde-se,aí está sua explicação.
Não quero mais confundir a minha paz.
Deixe-a dançar calma apenas na extensão magenta do horizonte.
Deixe-a ficar mais um pouco.
Apesar de ser tarde.
Deixe-a ir somente após meus olhos se fecharem e meu sono triunfar.
Encoste-me na relva úmida,para que eu não possa vê-la partir.
Assim,ao menos pensarei que tudo foi um sonho edílico e
Esquecerei quando acordar.
imagem: Chill October - John Everet Millais
Janela
Meus olhos ardiam novamente.Coçei com a palma da mão,procurando com aquele gesto instintivo afastar o sentimento de que o ônibus já estava perto de seu destino.Sim,o destino era tão somente do ônibus,porque eu não tinha destino,tinha apenas uma trajetória indefinida,pela qual eu me arrastava mecanicamente,como uma lesma.
E foi assim,mecanicamente,que olhei para a janela suja e por que não dizer,triste? metáforicamente,claro.
Objetos,grande mistério.Não sentem,aí está sua mesquinhez e sua grande vantagem sobre nós.
A janela me dizia tanto,me dizia muito mais do que a pobre professora que debilmente procurava entreter com seus causos uma jovem pálida e ranzinza. eu.
A janela me dizia que lá fora havia vida.Não a vida exageradamente alegórica e espalhada das Drags,nem decerto, a alegria rala e frustrada das pessoas ou seriam vultos, que passavam por mim e pareciam fartar-se em suas concepções frágeis da vida que levavam.
Aquela janela medíocre,ocre,empoeirada com poeira que não era encantada,aquela janela quase profana,que mostrava os sonhos de milhões desfilando em fileiras pelos meus olhos alérgicos e cansados.
Aquela janela era meu pacto silencioso com o mundo.
A janela era o contato único com a realidade.
A janela sustentava-me.
A existência de tudo passava por seu olhar revelador.
A janela me trazia lembranças genuínas,consideravelmente mais doces do que a voz da professora dos causos.
E menos terrível do que todas as faces que o mundo já ousou mostrar-me.
A janela era a pequena relíquia suja que me salvou do brilhante mundo para o qual nunca fui preparada.
imagem : John Waterhouse
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Prolixa
Era triste e pálida
Era fria e tácita.
Não tinha fleuma,era apenas prolixa.
Suas palavras surdas,
Sua sensibilidade;
Apenas acúmulo de informação.Era granito.
Apenas prolixa.
Aquela que nunca julgou ser;
E quis entretanto, possuir a si própria.
É abstrata,cínica e prolixa.
Quase um crime.
Quase nada,prolixidade apenas.
Vestindo uma alma nua,servil,fria.
Nem mais um pio.
Nem mais nada para explicar o repúdio,
A falta de boa caligrafia,
A ausência de freios na cabeça e
o excesso de arquétipos no olhar.
Ela é prolixa,abstrata,cínica,vazia.
Nada mais.
imagem: Lady of Shallot -John Waterhouse
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Sagrada Inutilidade
Tenho medo das coisas banais.
Diferente de ume Abutre ao destender as asas e lançar-se ao vôo;
O abutre não tem consciência de sua natureza.
Ele não deseja ser um canário.
Acaso ele indaga a sumária razão de ser um abutre?
Agora que tenho dentro de mim,os vales e os desertos,
é difícil ter sangue.
Agora que os olhos tocam o infinito,
é doloroso verter lágrimas.
Quando tudo se torna irreal,
Os vagalumes tranformam-se em estrelas e a claridade incomoda mais do que o breu.
As lutas mais vãs sao travadas no solo minado das emoções,
que como cavalos selvagens guiados por suas intrépidas Amazonas,pisoteiam a derradeira planta celeste.
Nós destruimos aquilo que mais amamos.
Empurramos a nós mesmos por escolhas imprecisas.
Quando a noite se estende;
É mais fácil libertar as redomas que encarceram os gritos.
As verdades veladas parecem querer escapar,dominar o Universo e comungar com Deus!
Esse Deus das estrelas e do coração humano.
Esse Deus das montanhas e do relâmpago.
Não o entendo!
Talvez...ele não se entenda também,já que me fez não-entendedora de nada.
Haveria ele de se entender?
Talvez a Criação tenha sido um arroubo,uma decisão tomada sob pressão!
Poderá isso,responder a todas as questões que formulo no meio período de dormir?
Estou apenas filosofando.
A Verdade é que sou sempre aquela que quer partir e fica,fica indefinidamente.
Não é falta de vontade.
É comodismo.
É a Percepção de que a segurança é melhor que o indefinido seguir,
É a Legitimidade da pouca importância de ser constante.
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