From Anywhere




Eu sei que isso é uma carta,mas não sei exatamente a  quem ela dirige-se.
No fim, todas as cartas deveriam voar pelas nuvens e pousarem nas mãos de quem precisaria por ventura,daquelas palavras.
Creio,no entanto,que as minhas palavras não são utéis nem a mim,quanto mais seriviriam em caráter autruísta.
Estou escrevendo a você,entretanto.
Acho que depois de muito tempo,não? Você lembra-se da última vez que lhe escrevi?
Faça a bondade de lembrar-se,pois você deve saber a quantas andas a minha inválida memória...
Bateu-me uma súbita ansiedade e se você não se lembrar?
Será possível que não lembremos de nós mesmos?
Devo confessar que pinguei algumas gotas de absinto no pulso antes de começar a traçar essas linhas. Pode me censurar!
Ainda tenho mania de transformar os eventos patéticos da minha vida em aromosa poesia.
Faz muito tempo,isso eu sei.
Eu devo te contar como tudo foi pra mim. Acredito que você gostaria de saber no fim das contas.
Eu tentarei narrar o que posso.
Eu nasci num corpo feminino, prematura,como quem pede para vir ao mundo,ainda que com medo.
As vezes,penso que deveria ter ficado por mais tempo nos lugares pelos quais andei.
Meu pai me deu um nome extraído de um livro escrito por um pedófilo.
Estranhamente o caráter dual da menina do livro veio a revelar-se em mim também.
Então em um dia de junho,eu nasci.
Um bêbe feio,com bochechas enormes e olhos maiores que as bochechas.
E desde então parece que sempre choveu dentro de mim.
Por entre as minhas víceras,entenda.
Eu nunca tive muito o que falar com as pessoas e julgo que você deve saber os motivos,já que eu não sei ao certo.Acho que desde o ínicio faltou-me aquela distinção e brilho pessoal que torna qualquer pessoa irresistível.
Eu não podia contar a ninguém que nas noites de natal,enquanto todas as crianças rodeavam a mesa e espalhavam-se pelo tapete jogando jogos estúpidos,eu me escondia, encolhida na cama,pedindo pra que tudo acabasse.
Eu escutava no escuro,além de todos os timbres indefinidos,a sua voz e podia roconhecê-la ainda que distante. E deixava que ela guiasse meu sono e meu abandono. Assim dormia calma,ouvindo sua canção sussurante de ninar nos meus ouvidos molhados de lágrimas corriqueiras de natal.
Então desde os seis anos,eu passei a ter vertigens. Em consequência do que?
Você pode tentar responder e aproveitar o caminho e trazer-me uma caneca de chá?

Ah! Eu tenho obssesão por chá. De qualquer espécie,sim?
Não sei se tive antes,mas agora tenho e é necessário que você aceite isso portanto.
Sem mais rodeios,eu tinha vertigens.
Na escola primária,eu não pude participar de algumas atividades por ter vertigens.
Eu,porém, imagino que foi alguma força óbvia que dizia ao vento: "Essa não,ela não saberá dançar,pois ela não é graciosa... Veja bem! Olhe de perto, examine os dentes!! É um tanto arisca,não? Esses olhos que parecem discordar do resto do corpo e essas sobrancelhas esparsas e estranhas? Não! Ela deve combinar com as paredes,andar esgueirando-se como um andrajo imundo!"
Por eu te conhecer ( conheço?), você deve estar incrédulo,mas no segundo seguinte,garanto-lhe,estará rindo ao imaginar-me nessas circunstâncias,não vai?
Depois de um tempo, você acaba percebendo que você, na condição pura e elementar de "você", alma,essência,seja  lá que porra for tudo isso,não importa a ninguém.
Você percebe que suas melhores horas foram solitárias,ou melhor, foram na companhia de autores mortos e desconhecidos,que despertam de suas páginas encardidas e vêem te colocar mais pra baixo.
Então você acorda e vê que não sabe diferenciar rostos,parece que já viu tantos,mesmo estando confinada em um pedaço de poço fundo no meio de lugar algum.
Você só decifra vozes e isso te deixa contente.
Foi assim comigo,porque a princípio,eu sempre minto,você deve saber,porque talvez seja isso que tenha me afastado de você.
Se eu fosse uma pessoa exata e calçada nos sapatos do cotidiano,eu poderia estar com você hoje,eu sei.
Mas nasci com o coração terrivelmente explosivo,encolerizado e propenso ao choque e ao fel.
Eu percebo que não vale a pena dançar,se você quer parecer bonito e agradável a sensibilidade alheia.
Eu não quero,jamais,acariciar a sensibilidade de ninguém,não me obrigue a isso, você sabe como terminaria.
Só sou notável quando sou profana,rídicula e imbecil ou quando me revisto de uma das minhas incontavéis capas de proteção contra a realidade. Se você estivesse aqui,eu não precisaria usá-las.
Hoje,eu posso dizer que a música só é música se você pode cantá-la, injetá-la,tomá-la, a sua maneira.Fazê-la correr quente e bombear ar aos seus pulmões,até eles sangrarem na explosão.
Algo como um orgasmo.
A pequena criança feia e irreal que ninguém olhava nos olhos,não mudou muito.Ainda odeia que lhe vistam e tomem-na pela mão.
A pobre louca das cobras voadoras que nunca amou na vida,porque tem um amor sem limites e sem passado pelo desconhecido,continua implorando que não a abandonem numa cápsula solta e que a corrijam as vezes,ela não sabe nada.
E você sabe disso,não?
Eu posso dizer com é estar morta,como é ser uma voz sem nome e como é viver nesse mundo,olhando um mosaico de pequenos e infinitos mundos mágicos ao meu redor, girando lentamente enquanto minhas pálpebras pesam.E vivendo fora do meu lugar,eu continuo aqui,ouvindo seu riso de longe,aqui no frio e ao relento como uma pobre louca cujas palavras ninguém entende e por isso a julgam como louca.
Fria,suja,vil.
Mendigando afeição como um rato de esgoto a rastejar para fora da possibilidade da morte.
Já não consigo perceber se está frio,como está o tempo por aí?
Arde em mim,vela rápida.
Você rirá? 
Se você rir,eu escutarei e terei paz por um segundo inócuo.
Conte as pessoas que sou triste mesmo,que não me obriguem a sorrir e peça que não me entendam e que apenas me dêem chá e mantenham-me longe de janelas.Diga-lhes,que você é a única pessoa que pode me entender e conversar em silêncio comigo.
E que só existo quando escrevo,a parte isso,estou morta.
Eu não sei quem sou,ou quem fui,certo?
Também não sei quem você é.
Isso nunca foi importante,por que seria agora?
Você sabe de onde viemos.
Eu sinto sua falta,realmente.

1 comentários:

blur 25 de janeiro de 2010 às 04:42  

invejo sua coragem, muito bom.

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ahn?

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