Estava doente.
Quanto a isso,não restavam dúvidas.
Mas era tão jovem,tão doce,tão cedo,que pensaram que a doença pudesse esvair-se,como qualquer problema cotidiano.A doença,no entanto,era mais forte que a sede e calava suas frágeis resitências.
Ela não aprendera como ser imune a vida.Ser imune a vida é algo que só é fácil para os coveiros e os santos,apesar de alguns enganos.
Ser imune a vida é próprio dos psicopátas de vitrine e das Igrejas.
Ela não tinha medo da doença,pelo contrário,agora ela podia receber bolo de mel e chá fumegante na cama,enquanto seu irmão ensaiava passos trôpegos na neve,a caminho da escola.
Ela não podia atinar o motivo pelo qual todos ficavam solenes e graves quando a viam e sentavam para conversar com ela a beira da cama.
Queria dizer a eles que já aproveitara tudo da vida e que agora, só queria saber das nozes que su vó a trazia todas as sextas a noite.
E dizer também que não iria para o céu,porque já estava dentro dele e sempre esteve e que o verdadeiro "Inferno" era o quarto onde havia ficado como uma ermitã por dois meses,onde o "Diabo" vestido de azul e escondendo a face (como todos os verdadeiros demônios fazem) com uma máscara entrava para lhe aborrecer.
Ela aguentou tudo pacientemente,com o tipo de paciência tão sensata que chegava a parecer mórbida.
Ela apenas jogava cartas e dados com a Morte,que segundo ela,era um moço com um constante ar zombateiro de quem acabou de roubar um pedaço de queijo da geladeira e com um sorriso pintado de infinito,que usava uma gravata borboleta amarela,um terno azul e um barco de jornal na cabeça.
Sempre que a menina ganhava o jogo,a Morte lhe concedia um dia a mais.
Ela era boa nisso,por isso colecionava dados e dias.
-A vida depende desses jogos com a Morte. - Dizia com semblante carregado,para logo após cair em um riso convulsivo.
Ela sabia que ía morrer.
Não tinha porém a certeza tola dos doentes e sim a certeza óbvia que todos nós temos ao morder uma maçã e saber que ela expelirá seu suco agridoce em nossos lábios.
Acaso alguém ousaria dizer que já mordeu uma maçã seca?
As maçãs estão sempre a chorar.
Ela,entretanto, não chorava.
Mesmo sabendo que a vida brilhava em cascatas lá fora.
Suas lágrimas eram tão essencialmente belas,que ela as guardava para si.
Ficavam ali,presas entre suas retinas imóveis.
Somente ela tinha posse delas e possuir era algo que sempre a encantou em particular.
Possuir tudo quanto lhe era permitido.
Lastimava apenas que não pudesse possuir as gotas de chuva de Maio,por que por mais que pudesse retê-las entre as mãos,elas não se tornariam cristais nem sequer tingiriam a ponta dos seus dedos de azul.
Então ela contentava-se em tê-las sob o olhar por um segundo doce,do qual resultaria a queda das gotas e um dia, a queda última das mãos.
Mas a pobre sabia que indubitavelmente,morreria.
E quem disse que conhecer a Morte prepara para a vida,não conhece nem uma nem a outra.
Dentro daquela abstinência permanente do desconhecido,
Vivia ela.
Confinada no território íngreme do seu espírito turbulento.
Aprendera a conversar com bonecas sem cabeça e escutar ainda que sem ouvir,suas canções de natal.
Aprendera a ver a neve estender-se até onde permitia seu olhar.
A neve era um convite tolo a felicidade.
Seus pés não cediam ao frio,podia sentar-se a beira de um lago congelado e afundá-los nos flocos de neve,sem que isso alterasse em nada sua temperatura.
Nunca fora passível a dor.
Sua aceitação a morte,era cercada de um misterioso respeito a vida e as lágrimas.
Porque,para a menina, ocupar espaço no mundo cheio de grandeza,já era algo memorável.
Vir ao mundo e aspirar seu hálito soberbo já compensava a dor de ter nascido.
Nascimentos são tristes.
Morrer é fácil.
Não existe dor após a dor.
Quando se morre,acaba-se.
Quando nascemos,ganhamos o mundo de presente... sem pedir...
Tatear a vida enquanto cresciam as hortas e as crianças.
Ter essa fome de qualquer coisa e qualquer coisa fugir.
Ter este sopro de vento na cabeça e um cofre ,no lugar de um coração...
Ainda que míudo,inócuo,sem tê-lo realmente.
Mas a desgraçada sabia que ía morrer e por isso sorria,ocultando nos lábios a fragilidade do ar e da vida.
Seu sorriso era o último rastro de mistério em um mundo revés e verde.
Sem o sorriso não existiria o sol,a maçã,não existiria a fome e a saliva.
Nem sequer existiria o existir,então todas as existências não existiriam e não existir deixaria de existir,inexistindo eternamente.
2 comentários:
eis o que dá ficar numa cama tomando chá, verdades.
apostar dias com a morte! ganhei uma idéia de natal!
gostei muito :D
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